Você sempre estará aqui.
No dia 6 de março eu sempre lembro de
você, na verdade não esqueço em nenhum dos outros dias. Sua cadeira
ainda está no mesmo lugar, sento nela toda vez que passo por lá.
Eu dormia antes da minha mãe ajoelhar do
lado direito da cama e me acordar para contar. Preferia ter continuado
dormindo todo o tempo, só queria fechar os olhos por 1 minuto e
acreditar que era uma mentira. Para aquela situação, o importante não
era o que acontece na vida, era como íamos lidar com isso naquele
momento.
Não chorei na época, não tinha porque
fazer isso, eu acreditava em milagres e ainda acredito, mas agora eu sei
que eles acontecem só quando podem acontecer. Tudo acontece quando deve
acontecer.
Você tinha 63 anos, toda a paciência do
mundo, uma casa, uma família, dois filhos e dois netos, amigos, um
escritório e um diploma de direito. Mas nem sempre você fazia tudo
direito e isso era bom. Tinha um carro, um apartamento na praia, tinha
também que levantar cedo todos os dias e fazer leite pra sua neta antes
de levá-la no colégio, sabe o que mais você tinha? Câncer.
Foi a primeira vez que conheci melhor
“isso”. Antes não podia dizer que não gostava, nem sabia ao certo o que
era, mas eu soube, e não gostei. A minha revolta não era passageira, é
mais realista dizer que ela será eterna.
No banco de trás do seu carro eu me
sentia segura, nada de ruim poderia acontecer quando você estava por
perto, tudo ficava sob controle.
Nós éramos iguais, você ria de tudo, e ria de mim porque eu falava errado quando era pequena.
- O que é isso que você está comendo, Ju?
- É “pudinho” que a vó comprou no peralta.
“Pituquinha” e “pinduca”, só você me
chamava assim, eu nunca mais ouvi isso. Odiávamos velórios e então,
quando tinha algum, você comprava ameixinhas e nós ficávamos no carro
comendo e conversando. No shopping sentávamos no banco e riamos de todo
mundo que passava, você adorava rir dos outros e eu adorava você.
Ainda tenho a caixinha de madeira que
você me deu para guardar coisas especiais, ela é especial e nela tem sua
foto, sua carteira da OAB e o bilhetinho que você me escreveu, ele é
exatamente assim:
Jovial, alegre, feliz;
Uma flor ainda em botão;
Leva ao acaso tudo o que diz;
Ignora, ainda, o que seja “razão”;
Ama sem saber que ama;
Nada na cabeça e tudo no coração;
Assim é que te vejo, Juliana.
(Ernesto 10/95)
Não havia uma única palavra que não
soubesse me explicar, você era inteligentíssimo e esperava o mesmo de
mim. O melhor que eu fizesse nunca era suficiente, lembra disso? Uma
nota 10 era o máximo que eu podia tirar, e tirei, mas depois daquela
prova teria outra e você queria um 20, porque eu era capaz de conseguir
isso. Eu era capaz de fazer qualquer coisa porque você acreditava em mim
e o simples fato de você acreditar já era a ajuda que eu precisava. Me
tratou sempre como se eu fosse uma princesinha e era assim que eu me
sentia quando estava com você.
Nunca levantou a mão para mim e se
tivesse levantado, bateria sem me machucar, mas machucou sem me bater. E
você não teve culpa nisso, eu sei. Mas doeu muito, foi bem difícil. E
essa dificuldade começou nos dias em que eu te ligava no hospital e você
chorava quando ouvia a minha voz, você queria voltar pra casa e poder
me ver. E era lá que eu também queria te ver, me perdoa, eu não tinha
coragem de ir ao hospital. Mas hoje eu não sairia de lá. Quando recebi a
ligação, eu chorei tudo o que não tinha chorado até aquele momento. E
orei por você.
Dias depois nós nos encontramos, você se lembra? Acho que não. Embora tenhamos nos encontrado você não me viu, mas eu te vi.
E você não sabe como foi estranho quando
entrei ali, estava lotado e todos esperavam por mim. No telefone minha
mãe já tinha me deixado avisada, eles sabiam que éramos grudados e a
minha reação causava curiosidade. Foi bom saber que as pessoas olhavam
para mim e lembravam de você. Todos disseram que sentiam muito, mas eles
não sentiam como eu. Se era muito para cada um deles, ninguém chegou
perto de saber o que foi para mim. Fiquei sem coragem de chegar perto de
você, não sabia o que fazer, nem como te olhar e eu tinha medo. Sabe
qual foi a primeira coisa que eu disse pra Paula? “Vou pro carro com o
meu vô!”, mas me dei conta do que tinha falado. Ela ficou sem graça e me
abraçou.
Quando percebeu o meu receio, disse que
ia junto comigo até você e ficaria do meu lado direito para que ninguém
conseguisse me olhar enquanto eu ficasse ali parada. No tempo em que
estive do seu lado não soltei sua mão e mexi no seu rosto algumas vezes.
Vi o tio Marcos chorar, eu nunca tinha visto e nunca vou esquecer essa
cena.
Hoje você tem mais um neto e um genro.
Eles não tiveram a mesma sorte que eu e você também não teve. É
importante dizer que os dias têm sido e sempre serão incompletos sem a
sua presença.
Queria que você me olhasse e visse que
eu cresci, acho que ficaria feliz. Ano que vem me formo na faculdade e
já achei uma resposta para a sua pergunta, vou ser redatora
publicitária. E se hoje eu consigo concluir uma frase a culpa é toda
sua, foi você quem gostou de escrever primeiro, e como eu gostava de
você, quis aprender a fazer igual.
Você não pôde lutar contra o câncer, já
era tarde, mas eu sou capaz de lutar com a consequência e isso eu sei
que você sabe, apenas aceitar não é o bastante, é preciso superar
diariamente. Foi assim que você me ensinou a ser forte e é dessa forma
que eu vou dar o meu melhor por você.
Tenho muita coisa para te contar sobre
esses anos, mas nosso tempo acabou. Acho que consigo escrever de forma
breve para que você não fique sem saber do principal:
Engraçado, atencioso, carinhoso;
Responsável pelo que eu sou;
Nunca será esquecido;
Espero pelo dia em que vamos nos reencontrar;
Sinto demais a sua falta;
Tudo o que eu conseguir vou dedicar a você;
Obrigada por tudo!
(Juliana 10/07)
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